quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Vida Real
DENISE FRAGA - denise-fraga@uol.com.br
Primeira centésima vez
"Quando volto de viagem sou capaz de passar um dia ou dois olhando meu bairro com olhos de turista"

Qual foi a última vez que você fez uma coisa pela primeira vez? No escuro do cinema, um publicitário qualquer querendo me vender alguma coisa me flechou com a frase de efeito.

O filme começou e eu não conseguia me concentrar pensando em qual tinha sido a minha última primeira vez.

Senti certo alívio enumerando coisas banais como o próprio filme, alguém que tinha conhecido, um restaurante novo, um doce, mas minha mente não sossegava querendo ter pulado de paraquedas na semana anterior. Bom publicitário. Mais ou menos: não me lembro do produto.

Na verdade, a frase me incomodou porque veio reforçar minha sensação de que acabamos destinando o melhor de nossa criatividade para o trabalho, muitas vezes deixando nosso prazer sem o devido esforço criativo.

A vida é tão múltipla, e a informação, tão acessível que não há mais desculpas para não termos primeiras vezes todos os dias se quisermos. E nem precisa muito para criarmos pequenas revoluções cotidianas.

Vi no outro dia, por exemplo, a capacidade milagrosa que tem um simples jogo de mímica num comportado almoço de família. A princípio, muitos rejeitaram a ideia, acharam meio ridículo "brincarmos" ali. Minutos depois, estavam irreconhecíveis, subindo no sofá aos berros com os olhos brilhantes.

Einstein falava da importância de manter viva a capacidade de maravilhar-se. "A emoção mais bela que podemos experimentar é o sentimento do mistério."

Por isso é tão bom viajar. Viajar nos devolve o estado de simplesmente existir. Acordamos e começamos a andar em busca de maravilhar-nos. E uma viagem é capaz de aguçar nosso olhar sobre tudo.

Quando volto, sou capaz de passar um dia ou dois olhando meu bairro com olhos de primeira vez, mas o cotidiano implacável não tarda a desfazer o etéreo ineditismo de minha rua. Como manter-se turista de si? Como renovar a curiosidade, a grande esperança de maravilhar-se?

Olho a avidez instalada nos olhos de minha afilhada em seu um ano e meio de vida, encantada com uma simples colher. Olho a colher. Nada. Olho de novo e lembro de minhas aulas de física ótica. Tinha esquecido que eu era capaz de virar de cabeça para baixo no espelho côncavo.

Roubo a colher de sua mãozinha, pensando na pergunta do cinema. Meu caro publicitário, lhe devolvo a questão: qual foi a última vez que você fez de novo pela primeira vez uma coisa que você já fez pela centésima vez?

DENISE FRAGA é atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo)