Vida Real
DENISE FRAGA -
denise-fraga@uol.com.br
Primeira centésima vez
"Quando volto de viagem sou
capaz de passar um dia ou dois olhando meu bairro com olhos de turista"
Qual foi a última vez que você
fez uma coisa pela primeira vez? No escuro do cinema, um publicitário qualquer
querendo me vender alguma coisa me flechou com a frase de efeito.
O filme começou e eu não
conseguia me concentrar pensando em qual tinha sido a minha última primeira
vez.
Senti certo alívio enumerando
coisas banais como o próprio filme, alguém que tinha conhecido, um restaurante
novo, um doce, mas minha mente não sossegava querendo ter pulado de paraquedas
na semana anterior. Bom publicitário. Mais ou menos: não me lembro do produto.
Na verdade, a frase me
incomodou porque veio reforçar minha sensação de que acabamos destinando o
melhor de nossa criatividade para o trabalho, muitas vezes deixando nosso
prazer sem o devido esforço criativo.
A vida é tão múltipla, e a
informação, tão acessível que não há mais desculpas para não termos primeiras
vezes todos os dias se quisermos. E nem precisa muito para criarmos pequenas
revoluções cotidianas.
Vi no outro dia, por exemplo,
a capacidade milagrosa que tem um simples jogo de mímica num comportado almoço
de família. A princípio, muitos rejeitaram a ideia, acharam meio ridículo
"brincarmos" ali. Minutos depois, estavam irreconhecíveis, subindo no
sofá aos berros com os olhos brilhantes.
Einstein falava da importância
de manter viva a capacidade de maravilhar-se. "A emoção mais bela que
podemos experimentar é o sentimento do mistério."
Por isso é tão bom viajar.
Viajar nos devolve o estado de simplesmente existir. Acordamos e começamos a
andar em busca de maravilhar-nos. E uma viagem é capaz de aguçar nosso olhar
sobre tudo.
Quando volto, sou capaz de
passar um dia ou dois olhando meu bairro com olhos de primeira vez, mas o
cotidiano implacável não tarda a desfazer o etéreo ineditismo de minha rua.
Como manter-se turista de si? Como renovar a curiosidade, a grande esperança de
maravilhar-se?
Olho a avidez instalada nos
olhos de minha afilhada em seu um ano e meio de vida, encantada com uma simples
colher. Olho a colher. Nada. Olho de novo e lembro de minhas aulas de física
ótica. Tinha esquecido que eu era capaz de virar de cabeça para baixo no
espelho côncavo.
Roubo a colher de sua
mãozinha, pensando na pergunta do cinema. Meu caro publicitário, lhe devolvo a
questão: qual foi a última vez que você fez de novo pela primeira vez uma coisa
que você já fez pela centésima vez?
DENISE FRAGA é atriz e autora
de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed.
Globo)
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